É preciso resgatar o processo do PDP e seus antecedentes para entender o conflito posto à mesa nesses dias decisivos de outubro. Essa ‘visão de conjunto’ é fundamental para entendermos esse momento pela qual estamos passando no PDP de Florianópolis.
O ‘Movimento Pela Reforma Urbana’, arquitetado nos idos dos anos 80, conseguiu inserir na Constituinte de 88 uma série de dispositivos de planejamento urbano que desencadearam sucessivos processos de normatização, tal como o que confluiu para a discussão e aprovação do Estatuto da Cidade em 2001, treze anos após, fato que já evidencia premeditada procrastinação do processo legislativo quando esta morosidade visa privilegiar determinados setores, como neste caso, o da construção civil e especulação imobiliária, em detrimento da qualidade de vida da população e da natureza.
Ainda que não perfeita, essa lei federal obriga os municípios, especialmente os maiores, a adotar uma série de procedimentos quanto à discussão e aprovação de seus Planos Diretores, entre os quais, a criação de um ‘Núcleo Gestor Municipal do Plano Diretor’, assim como a imposição de que o processo seja ‘participativo’, e cuja atribuição precípua é a de regular todo esse processo. Isso representou um enorme avanço em cima de tudo o que havia anteriormente em termos de planejamento urbano no país, feito intra-muros. Porém, os setores interessados em que esse processo não funcione a contento fazem de tudo para descaracterizá-lo, ferir suas bases conceituais e, pior, ao longo dos últimos anos, bolaram uma série de estratagemas que conformam um ‘jogo de faz-de-conta’, dando um matiz de participação popular apenas para cumprir formalmente o enunciado disposto em lei, quando não ignorando solenemente os ‘núcleos gestores’ constituídos, como foi o caso de Florianópolis, mais uma vez reprisado por via das últimas ações da PMF.
No dia 28 de setembro de 2006 tem-se o registro formal da primeira reunião do Núcleo Gestor Municipal do PDP já constituído, realizada na sede da OAB/SC, há exatos sete anos. Ela, porém, foi precedida por uma série de Reuniões Públicas, entre elas duas realizadas no Teatro Álvaro de Carvalho, em julho e agosto daquele ano, visando discutir a formação do NGM que, inicialmente, ficaria composto por 26 membros apenas. Posteriormente, em votação apertada, venceu a proposta de expandir o colegiado para 39 membros, agregando aos 26 originais, outros 13 representantes dos 12 Distritos da capital, subdividindo o Distrito Centro em duas representações, uma da ilha, outra do continente, dada a sua dimensão territorial e populacional. Essa ‘saudável e democrática expansão’ alteraria a composição dos blocos presentes no NGM, fazendo como que a bancada do governo diminuísse em proporção frente às bancadas das entidades e aquela emanada pelos Distritos. Foi, portanto, uma grande vitória para o movimento popular da cidade. Estávamos no 2º ano do governo Dario Berger que prometia entregar o anteprojeto em no máximo um ano, como ‘grande realização do seu governo’, e sempre tomado como ‘absoluta prioridade’, conforme dizia à época.
A eleição dos representantes distritais desencadeou uma disputa frenética por posições políticas de todos os setores envolvidos no processo, algumas até resultando em conflitos abertos, porém, todas legitimadas por um regramento inquestionavelmente democrático estabelecido pelo próprio Núcleo Gestor Municipal, e que foi implementado equanimente do início ao fim nessa 1ª bateria de 13 Audiências Públicas Distritais pelo IPUF. O processo de participação popular tomou um vulto inesperado até mesmo para as lideranças comunitárias envolvidas à época, por vezes atropeladas pela força da pressão autônoma exercida pelas suas comunidades, quando se deu a 2ª bateria de Audiências Públicas para deliberação das diretrizes emanadas da chamada ‘leitura comunitária’. Com elas, estavam traçadas as linhas gerais que fundamentariam todo o anteprojeto do PDP, colidindo frontalmente com os interesses especulativos e dos setores empresariais da cidade. Acuada politicamente, a Prefeitura optou por ‘esfriar o processo participativo’, suspendendo os trabalhos do NGM ao final de 2008, tomando como argumento/pretexto um documento emanado pela então já formada ‘bancada popular’, grupo de representantes de distritos e algumas entidades dos movimentos sociais da cidade. Efetivou-se, assim, o primeiro golpe na democracia participativa do processo do PDP, o qual continuaria sob o comando burocrático do IPUF na seqüência do 2º governo Dario Berger, reeleito para mais um mandato. Em março de 2010, a ‘revolta do TAC’ selaria o rechaço a malfadada proposta elaborada pela CEPA, empresa argentina contratada pelo IPUF, para estupefação geral.
Por força dos movimentos sociais e bases distritais constituídas nessa primeira fase, fez-se a ‘auto-convocação’ do NGM no início de 2009 e buscou-se, acima de tudo, obrigar a PMF a retomar o processo por via da reconvocação do NGM, operação de resistência popular desgastante e morosa que só obteve êxito em agosto de 2011, já em meio a franco processo de esvaziamento de participação popular. Um dos mais fortes argumentos utilizados pela ‘bancada popular’ e pelos MP’s foi justamente o descumprimento do Estatuto da Cidade, pressão que sob a ameaça de ‘improbidade administrativa’, fez com que Dario Berger reconvocasse formalmente o NGM, colocando à sua frente Rodolfo Pinto da Luz, por ‘ironia do destino’, o atual Secretário de Educação de Cezar Souza Jr.. Mais uma vez, assim como em 2007, Dario prometia que entregaria o anteprojeto e o aprovaria na Câmara Municipal até o final de seu 2º governo e, mais uma vez, o processo foi arrastado por culpa da própria administração que não colocou sua máquina para ultimar o anteprojeto como deveria ser feito e empreender a articulação política para aprová-lo.
Diante do orquestrado ‘jogo de empulhação procrastinadora’, as forças empresariais e o jogo político perverso dos principais atores políticos envolvidos na cidade começaram a atribuir os constantes atrasos do PDP ao Núcleo Gestor Municipal, consolidando a noção da ‘pressa’ para ultimar o processo, um dos argumentos falaciosos que embala o atual discurso de César Souza Jr, segundo ele, urgência esta necessária para ‘o bem da cidade’.
Em clássico rompante midiático, anunciou no dia 25 de abril deste ano a ‘retomada do NGM’, emitindo decreto de reconstituição do mesmo, porém, retirando-lhe a principal atribuição, que é a de normatizar o processo de discussão e deliberação, tornando o NGM mera ‘peça decorativa’ do PDP. Ainda no evento de abril, o IPUF anunciava para alguns dias mais a apresentação da primeira minuta do anteprojeto que, pasme, até hoje não se viu disponibilizada em lugar algum.
Desde fins de abril o NGM vive um ‘dilema existencial’, pois não faz idéia se existe ou não existe para as vias de fato e de direito, já que ora é chamado para discutir, ora é ignorado quando discute e decide, como foi o caso da última reunião formal acontecida em 5 de setembro último. Esta reunião deliberou, em votação que apontou 16 votos a favor contra apenas 5 votos contrários (dados à proposta da PMF/IPUF), pela realização de uma bateria de APs Distritais, na esteira do processo vivido em 2007/2008 o qual chancelou, à época, as diretrizes comunitárias e gerais do PDP, processo carregado por enorme grau de participação popular e inquestionável legitimidade.
Na mesma reunião do dia 5, este que redige estas linhas apresentou uma proposta de ‘macro-calendário’, o qual acolheria a bateria das APs Distritais e culminaria o processo deliberativo do anteprojeto em uma Audiência Municipal a ser feita ainda até o final deste ano, contemplando todas as partes que querem ver o processo encerrado o quanto antes e da forma como manda a lei. A proposta, porém, sequer foi permitido discutir no plenário uma vez que, em gesto antidemocrático e francamente desrespeitoso ao colegiado, o presidente do NGM, Dalmo Vieira, encerrou intempestivamente a reunião bem antes do seu horário regimental, alegando levar ao Prefeito a deliberação recém emanada no colegiado, reprisando, assim, um gesto exatamente igual ao feito por Ildo Rosa (então presidente do NGM) cinco anos atrás, quando este recebeu o documento/proposta da ‘bancada popular’, acima lembrado. O seu modus operandi parece ter ‘feito escola’ na administração municipal.
Mas agora, ao contrário de Dario Berger, que em 2009 suspendeu oficialmente as funções do NGM, Cezar Souza o pôs em uma espécie de ‘limbo’ jurídico, razão do seu dilema existencial, comunicando em uma nota lacônica assinada pelo Presidente do NGM, que, para todos efeitos não foi extinto, eivada de omissões e falsas premissas, a exemplo das que reportei acima, que ‘tem o maior respeito pelo colegiado’, mas que, diante da conjuntura, fará mesmo o que deu na sua telha autoritária. Não é pouco.
Em verdade, pretende entregar o anteprojeto sem passar pela chancela de Audiências Distritais, substituindo-as pelo que chama de ‘oficinas comunitárias’ e culminando o processo em uma só ‘Audiência Geral’, que sequer terá caráter deliberativo como se observa, pois chamada para ocorrer entre 19h e 22h do próximo dia 17 de outubro, logo mais. Dias depois, garante, entregará o texto para a Câmara Municipal, atropelando tudo o que recomenda um processo participativo e que, por esse caráter, pode ser acolhido como legal e legítimo. Arrisca-se, pois, a algum desgaste político que, em seus cálculos, certamente está disposto a enfrentar. Tem, porém, a seu dispor, um quartel de comunicadores, formadores de opinião e entidades vassalas que, segundo seus cálculos, imprimirão força midiática a suas posições tão hegemônica que neutralizará qualquer oposição, ainda que esta seja calcada no simples cumprimento da lei.
O movimento popular da cidade, no entanto, além da cautela que deve ter diante do que apresentará o texto do anteprojeto, deve reivindicar a aplicação da lei sem subterfúgios, sem meias tonalidades, exigindo a prevalência da decisão do NGM tomada em sua última reunião, que é a realização das Audiências Públicas Distritais antes da realização da AP Municipal, além de bem convocadas e organizadas, por pressuposto, conferindo ao NGM a primazia sobre o processo, como manda a lei e por ele havia sido decidido legitimamente em sua última reunião no dia 5.09.
O ‘cálculo político’ de Cezar Souza toma como base a franca desmobilização popular em torno do tema, já que levado aos trancos e barrancos ao longo de penosos sete anos como relatei acima, e computa que, diante de possíveis ‘jus esperniandis’ aqui e acolá, superará o desgaste da crítica a seus atos imperiais pelo cumprimento de sua promessa de campanha, constantemente reiterada – a entregar do anteprojeto do PDP à Câmara até o final deste ano. Misturam-se, com rara nitidez, nesse tumultuado processo, conteúdo e método, ambos irremediavelmente arranhados por culpa de sucessivas administrações municipais que descumpriram o Estatuto da Cidade e quando o fizeram, o fizeram ‘a meia boca’, como mais uma vez se vê agora.
Parece incrível que, depois das imensas mobilizações de junho e julho no país, em prol de mais democracia participativa, transparência e tantas outras reivindicações ‘mais republicanas’, o governo municipal se dê o luxo (ou arrogância) de executar um processo imperial dessa natureza, impondo sua agenda política ao ignorar solenemente o Núcleo Gestor Municipal do PDP. Se há uma conclusão que se poderá antecipar de antemão desse tumultuado processo do PDP em Florianópolis, é a de que em realidade somente um setor da cidade saiu dele vitorioso e ganhando política e economicamente: o da construção civil de braço dado com a especulação imobiliária, em detrimento da ampla maioria da população vivendo em meio a congestionamentos torturantes e tropeçando por sobre esgoto a céu aberto.
A você que leu essas linhas peço para ficar antenado nas posições e participar das ações que serão levadas a efeito pela ‘bancada popular’ do NGM que, em linhas gerais, procurarão denunciar o ‘embuste de democracia participativa’ perpetrada pelo governo municipal, ao mesmo tempo reivindicando uma série de questões-chave no texto do anteprojeto que será enviado à Câmara nos próximos dias, a se cumprir esse calendário imposto goela abaixo pela Prefeitura. Depois, porém, na Câmara Municipal, começa outra briga para que não tenhamos extirpado do texto e dos mapas decorrentes, aqueles quesitos que foram objeto da primeira fase do PDP. Portanto, meu amigo, se você acha que alguém já ‘ganhou a guerra’, prepare seu espírito, pois isso que estamos vivenciando é apenas mais uma batalha pelo direito à cidade e plena cidadania.
Florianópolis, 30 de setembro de 2013
Gert Schinke
Representante Titular Distrital do Pântano do Sul no NGM-PDP
Nenhum comentário:
Postar um comentário