Diante de uma política cada vez mais dominada por compadrios e acordos fisiológicos, sempre no viés eleitoreiro, o Correio da Cidadania inicia sequência de entrevistas com figuras relevantes, de dentro e fora da política parlamentar, do campo da esquerda, a fim de debater o atual momento político que vigora no país. Trata-se de lançar um olhar mais aprofundado para as eleições gerais de 2014, já mobilizadora de boa parte das energias dos grandes partidos e também da mídia.
Em conversa com o Correio, o deputado federal do PSOL Ivan Valente faz uma primeira análise das movimentações já percebidas e das possibilidades que se anunciam. Em sua opinião, o cenário soa vantajoso ao atual governo e sua base de sustentação, uma vez que a tradicional oposição de direita (PSDB e o esfacelado DEM) “está sem discurso, pois o governo o roubou, em relação à política econômica, privatizações e uma série de questões”, afirma.
O também presidente nacional do PSOL acredita em grandes possibilidades de segundo turno, uma vez que enxerga potencial na novidade Eduardo Campos (inclusive potencial alternativa ao conservadorismo) e no recall de Marina Silva (20 milhões de votos em 2010) com seu partido em construção, pulverizando o pleito. Tal quadro ainda abriria, de acordo com sua visão, um vazio programático à esquerda, a ser ocupado pelo seu partido e uma “provável” frente socialista.
E para a conquista de tal objetivo, Ivan acredita ser possível o levantamento de bandeiras dos grandes temas nacionais, escondidos nos principais debates, como “a defesa do SUS, dos 10% do PIB pra educação pública, revisão de algumas privatizações, combate aos leilões de petróleo, coisas que estão ao alcance. As bandeiras da esquerda não são apenas ‘anti’, são também alternativas”. Até por isso, o deputado federal desacredita as recentes picuinhas intra-poderes, uma vez que “são artificiais, pouco interessam à população no momento”.
A entrevista completa com Ivan Valente pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Os noticiários das últimas semanas trazem à tona um cenário praticamente pré-eleitoral, com forças governistas e oposicionistas se remexendo fortemente no tabuleiro político. Diante disso, como enxerga este atual momento da política brasileira e as movimentações para o próximo período eleitoral?
Ivan Valente: Creio que a campanha eleitoral está bastante antecipada, em meio a um momento de popularidade do governo, que mantém uma política de favorecimento ao capital financeiro, ao agronegócio e às grandes empresas. É uma política que, de um lado, favorece os setores mais ricos e, de outro, faz uma série de políticas compensatórias, que ajudam a construir sua popularidade. A candidatura do governo vai depender muito do desenrolar da crise econômica internacional e seus impactos internos, já que nossa economia continua sendo muito vulnerável, particularmente pelo problema da dívida pública e seu pagamento religioso, tomando metade do orçamento nacional.
Dos nomes que estão se colocando e sendo divulgados pela mídia, a candidatura de Aécio Neves, o clássico candidato dos conservadores, não tem um discurso competitivo contra o governo. Exatamente porque o governo roubou o discurso da direita, em relação à política econômica, às privatizações e uma série de questões. Hoje, o PSDB é um partido sem discurso de oposição. O PSDB não pode enfrentar a Dilma falando apenas em choque de gestão. E está com muitas dificuldades, apesar do apoio da mídia e de grandes setores empresariais.
Quanto às outras candidaturas que aparecem fortes, possivelmente o Eduardo Campos (creio que irá concorrer) pode virar um candidato anti-Dilma, da ala conservadora, uma vez que ele também pode fazer algum deslocamento dentro da base governista. Tampouco tem um discurso consistente, programático, ideológico. Nada. É apenas uma novidade. Mas pode ganhar apoio de setores conservadores e até competir no mesmo espaço do Aécio, deslocando aliados frequentes do PSDB, como o PPS, dentro dessa nova articulação que estão fazendo.
Tem ainda a candidatura do partido da Marina Silva, que ela está tentando legalizar. É uma proposta que não tem consistência ideológica, como ela mesma atesta, ao dizer que não é um partido nem de situação nem de oposição, nem de esquerda e nem de direita. Mas certamente tem simpatia de setores progressistas do eleitorado, por conta das questões da ética, do meio ambiente e do recall de 20 milhões de votos da eleição anterior. A mídia tem trabalhado muito em cima disso.
Nós entendemos ser preciso criar espaço para uma candidatura programática e ideológica de esquerda. É o que PSOL irá fazer, apresentando sua própria candidatura, ocupando o espaço dado pelo abandono das bandeiras que o PT deixou. Essas outras opções podem tentar chegar ao segundo turno, pois, com a maior quantidade de candidatos competitivos, aumentam as chances de segundo turno. O PSOL terá sua candidatura, certamente, e tem de ser a mais competitiva possível, em termos de novidade, programa e ocupação de espaço à esquerda.
Correio da Cidadania: Mediante a preponderância desse esquema eleitoreiro no pensamento e condução da política de nosso país, os problemas reais do Brasil de hoje, afetos à população, são relegados. Quais são, a seu ver, os principais problemas e questões do Brasil de hoje?
Ivan Valente: Eu diria que em nosso país temos uma agenda muito complicada, pois, apesar de ter uma presidente eleita pelo PT, conta-se com uma base de governabilidade ultraconservadora. Por exemplo, os ruralistas, que tiveram uma grande vitória no Código Florestal, agora querem avançar sobre Terras Indígenas, quilombolas e as Unidades de Conservação, através da Emenda Constitucional (EC) 215. E são da base aliada. Kátia Abreu e Blairo Maggi são da base aliada, uma do PSD, o outro do PR.
Temos uma agenda muito complicada. Porque a sociedade, especialmente em pautas de direitos humanos, como a redução da maioridade penal e a política antidrogas, trabalha muito com o senso comum. E isso empurra até setores progressistas do governo à direita, pra manter essa fonte de governança com o conjunto dos partidos aliados e a ideia de popularidade. A mesma coisa vale pra política econômica. A direita não tem outra proposta de política econômica, de modo que fica falando da inflação, do preço do tomate, ou seja, de políticas sazonais. Não se atacam questões como dívida pública, superávit primário, juros... Quer dizer, as grandes questões não são abordadas.
Eu diria que é preciso uma candidatura capaz de atacar pela contramão, fora do espaço da ordem. E acredito que há espaço pra isso, com bandeiras de uma nova política econômica, contrária ao modelo agroexportador, a favor da reforma agrária, que defenda a democratização dos meios de comunicação e o fim dos monopólios (coisa que nenhuma candidatura grande defende). E faça o enfrentamento dos problemas relativos aos direitos humanos que estão ocorrendo, outra coisa que só uma candidatura progressista pode levar adiante, ganhando um eleitorado mais consciente.
É nesse cenário que se desenvolverá o processo eleitoral; cenário no qual a reforma política foi enterrada no Congresso Nacional e o financiamento público de campanhas não sai do papel, mantendo as mesmas regras vigentes, que é por onde a governabilidade se sustenta, com toda a sua corrupção.
Correio da Cidadania: E como fica a esquerda diante de todo este cenário, no sentido de sua capacidade de protagonizar debates e fugir ao esquema de estar sempre à mercê da agenda imposta pelos setores dominantes?
Ivan Valente: Acredito que vivemos um momento de algum crescimento das lutas. Ainda está longe do ideal, pois não é capaz de chacoalhar as bases de dominação. Mas é no enfrentamento dessas grandes questões que se formará a massa crítica para garantir avanços transformadores em nossa sociedade, em todos os aspectos. De modo que as bandeiras da esquerda não são apenas “anti”, são também alternativas. Rever privatizações está no nosso alcance. Ser contra os leilões do petróleo e pela afirmação da soberania nacional também é uma grande bandeira, com questões que podem afirmar o partido em amplos setores.
Também acho que a crise econômica, e a estagnação que vivemos, pode gerar novos momentos de maior efervescência. Outras questões relevantes são a defesa do SUS, dos 10% do PIB pra educação, coisas que, mais uma vez, só uma candidatura de esquerda pode defender, ao lado dos movimentos sociais. Essa é a tarefa da esquerda comprometida com o socialismo e com o combate às injustiças.
Correio da Cidadania: Qual é a sua opinião quanto à política de alianças para a esquerda, especialmente pensando no próximo período eleitoral?
Ivan Valente: A política da esquerda tem de manter a coerência programática e ao mesmo tempo dialogar com o nível de consciência dos trabalhadores, tentando puxar setores descontentes do movimento social e também dos próprios partidos políticos, como aqueles que estiveram na Frente Popular de antigamente, no programa democrático-popular. Há setores descontentes, que podem compor um campo político mais amplo. Mas nós não acreditamos em deslocamento de partidos nem em alianças, mesmo nacionais, fora do leque mais à esquerda, ainda que hoje esse espectro não tenha muita representação nacional.
Correio da Cidadania: Mas como vislumbra a reorganização deste espectro político para o ano que vem? Acredita na possibilidade de avançar os passos na formação de uma esquerda socialista unificada, que marque forte presença na população no processo eleitoral de 2014?
Ivan Valente: É bem provável que os partidos da esquerda, especialmente PSTU e PCB, venham a compor uma aliança com o PSOL. Mas, ao mesmo tempo, as eleições são nacionais. Há deslocamentos em outros partidos, de seus setores progressistas, que o PSOL precisa estar preparado pra absorver, explorando as contradições internais de tais partidos. É lógico que falo de setores específicos, ou figuras, personalidades, que podem vir a compor um campo mais amplificado à esquerda.
Correio da Cidadania: Como analisa o atual momento do partido que você preside, o PSOL?
Ivan Valente: O momento do PSOL é um muito positivo. Saímos do processo eleitoral de 2012 com um fortalecimento bastante razoável para o tamanho do PSOL. Um partido que tem 1 minuto de televisão e nenhum recurso econômico conseguiu chegar ao segundo turno em duas capitais, ganhando uma, chegando bem no Rio de Janeiro e elegendo mais de 20 vereadores de capitais. Teve um salto, triplicando a referência nacional do partido, não só em termos de votação.
Por outro lado, creio que temos uma grande referência nas bancadas parlamentares do PSOL, que são bastante respeitadas, particularmente a nacional, por onde passa boa parte do debate político do país. Mas isso não significa que já demos um grande salto estrutural, porque é preciso viver um novo momento de ascensão do movimento popular, além de, evidentemente, da perda de hegemonia de certos setores políticos na sociedade.
Portanto, o momento para o PSOL é bom. Saímos vitoriosos das eleições e continuamos avançando em termos de conhecimento político e respeitabilidade na sociedade, afirmando um partido programático e ideológico. Porém, a velocidade do crescimento do partido não depende só da nossa vontade, mas também dos fatos objetivos.
Correio da Cidadania: Uma palavra final sobre a relação Executivo, Legislativo e Judiciário. Governo investe contra Ministério Público, ao pretender cercear poder de investigação dos procuradores; Legislativo avalia PEC que propõe reavaliar decisões do Judiciário no âmbito Legislativo; o Judiciário irrompe, por sua vez sobre Legislativo, ao tentar barrar projeto de lei - ao que tudo indica, de interesse do Executivo - que inibe a criação de novos partidos. O que tudo isso diz da política nacional e da relação entre os poderes de nossa República?
Ivan Valente: Acho que tem muito artificialismo em todos esses conflitos. Não muda muito. Temos um Judiciário mais politizado atualmente, com uma transparência maior, mas também com manifestações que mereceriam comentários à parte. Além de um Legislativo comandado por duas figuras bastante questionáveis, do ponto de vista político e ético. Mas a lógica da governabilidade levou a isso. Dos dois lados há problemas graves, que na verdade não são do interesse da população no momento.
É uma crise artificial, sugerindo uma crise institucional que não ocorrerá. Na verdade, as grandes questões não são resolvidas dessa forma. Por exemplo, se o Congresso quisesse se legitimar, teria aprovado um reforma política. Se quisesse se afirmar diante da população, não avançaria em legislações que violam a Constituição, como agora, que os ruralistas querem aprovar uma emenda que viola seu artigo 131.
Muitas vezes o próprio parlamento recorre ao Judiciário, pedindo intervenções, às vezes corretas, às vezes descabidas. Esse debate, em minha opinião, incide pouco sobre as grandes questões nacionais. Não se resolverá o problema do conflito de poderes, do pacto federativo, com brigas de Judiciário com Legislativo ou com Executivo. Falta mais política embaixo, mais participação popular.
Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é Jornalista.